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21 de ago. de 2009

O Homem Que Calculava

Um ensaio biográfico sobre Renato Russo mostra o planejamento cuidadoso com que ele conduziu sua carreira artística - e fala das saborosas excentricidades que fizeram sua fama

Em 1975, Renato Manfredini Jr., então com 15 anos, foi diagnosticado com uma condição que o imobilizaria na cama pelos dois anos seguintes. Sofria de epifisiólise - um desgaste dos osssos e cartilagens que faz do fêmur se descolar da bacia. Nesse período de sofrimento e tédio, dedicou-se a cria uma banda de rock imaginária, a 42nd Street Band, na qual assumiria a persona do baixista e vocalista Eric Russell. Encheu cadernos e cadernos - em inglês - com a história da banda. Aos 19, já recuperado, o jovem dava os primeiros passos para realizar os projetos que esmiuçara nos seus rascunhos, como cantor e baixista do grupo punk Aborto Elétrico. Já adotara então o nome artístico com o qual ficaria conhecido: Renato Russo. Em 1985, ao lado do baterista Marcelo Bonfá, do guitarrista Dado Villa-Lobos e do baixista Renato Rocha, ele lançou o primeiro disco do Legião Urbana. Foi como letrista e vocalista dessa banda que Renato Russo se tornou o maior nome da história do rock brasileiro. Os treze discos do grupo e os quatro álbuns-solo do cantor somam 14 milhões de cópias vendidas - 300 000 unidades só no ano passado. Essa história de obstinação é narrada no saboroso Renato Russo: o Filho da Revolução (Agir; 416 páginas; 59,90 reais), do jornalista Carlos Macedo, 39 anos, editor executivo do jornal Correio Braziliense.

O livro não pretende ser uma biografia completa e abrangente. É antes um ensaio biográfico, centrado na tormentosa relação de Renato Russo com Brasília, cidade com a qual o Legião Urbana sempre seria identificado. O tumultuado show da banda no estádio Mané Garrincha, em 1988 - em que Renato Russo brigou com o público e interrompeu a apresentação com menos de uma hora de performance -, ganha um lugar central na narrativa de Marcelo. As relações amorosas de Renato Russo - com meninas e meninos, como dizia uma de suas letras -, as drogas e a morte em 1996, são tratadas de modo mais sucinto. Mesmo com essas lacunas deliberadas, O Filho da Revolução é um retrato mais profundo do músico que O Trovador Solitário, biografia reverencial do jornalista Arthur Dapieve. Também é mais rico em documentos inéditos - fotos e fac-símiles de letras e notas do compositor, que farão a delícia do fã mais fetichista.

O novo livro mapeia as relações familiares dos roqueiros de Brasília com o governo, ao tempo da ditadura militar. O jovem Renato Russo - filho de um funcionário graduado do Banco do Brasil - quis muito conhecer o garoto que tinha uma guitarra Gibson, item raríssimo na década de 70, quando as barreiras alfandegarias eram rigorosas. O proprietário da guitarra tinha um canal seguro para importar instrumentos: seu pai, que viajava ao exterior como piloto do presidente Ernesto Geisel. O nome do garoto: Herbert Vianna, futuro líder dos Paralamas do Sucesso. No círculo dos jovens roqueiros, apareciam também futuros políticos. Renato Russo foi colega de aula do atual ministro da Integração Nacional, Gedel Vieira Lima. Gordinho, Vieira Lima foi maldosamente apelidado de "Suíno" pela turma do músico, que não tinha simpatia por ele. "Geddel é in-su-por-tá-vel", o roqueiro dizia aos amigos. O próprio Renato Russo sabia ser bem insuportável. Era o chato do gênero "cabeça". Metido a científico, certa vez se irritou com o enredo convencional de Brubaker, filme estrelado por Robert Redford - e se levantou no meio do cinema para insultar, aos gritos, a plateia "burra" que apreciava aquele lixo de Hollywood.

A excentricidade contribuiu para consolidar a aura de santo pop que cercaria Renato Russo em seus últimos anos. Mas nunca o impediu de conduzir a carreira de modo inteligente e calculado. Sua escolha dos integrantes do Legião Urbana é um bom exemplo. Cada um deles corporificava um "conceito" fundamental para a imagem da banda: Bonfá era o garoto bonito, Villa-Lobos tinha ares de menino-prodígio e Rocha, que era negro (e deixaria o Legião em 1988), conferia a diversidade étnica ao conjunto. É claro que todo esse calculismo não teria adiantado nada se Renato Russo não fosse, além de obstinado, talentoso. Era habilidoso nas letras longas e complicadas que mesmo assim se prestavam à memorização fácil dos fãs - como e Tempo Perdido e Faroeste Caboclo. De certo modo, o roqueiro de Brasília conseguiu encarnar o espírito de sua época. A juventude que se viu meio perdida entre o fim da ditadura militar e os primeiros anos de redemocratização deu voz à sua revolta sem objeto em canções como Geração Coca-Cola e Que País É Este. Renato Russo e Legião Urbana acabaram sendo bem maiores do que Eric Russell e a 42nd Street Band.

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